segunda-feira, 24 de março de 2008

About Last Night

"Já se conheciam a muitos anos. Foram apresentados ainda nos tempos de faculdade por um amigo em comum. Ele teve uma atração instantânea por ela, ficou encantado. Como era muito tímido, foi tentando uma aproximação sutil, disfarçada.Ela percebeu e não quis. De forma muito direta, explicou que não sentira atração. Ele num impulso tentou beijá-la e ela o repeliu. Houve um momento de constrangimento, sólido, pesado, eterno. Novamente ela tomou a iniciativa, e pintou cores coloridas naquele clima cinzento propondo uma amizade. Que fossem ao cinema, que dançassem, mas dela ele teria apenas amizade. Ele acatou.E assim foi. Durante quatro anos, foram amigos. Contavam um para o outro as enrascadas amorosas em que se metiam, trocavam conselhos, tornarem-se grandes cúmplices. E quando lembravam do início, riam e repetiam que não tinha mesmo nada a ver, que estavam melhor assim.Um dia ela conheceu alguém, ele deu a maior força. Ela se apaixonou, casou e mudou de cidade, foram morar em São Paulo, tentar a sorte por lá. Junto, levou o carinho do amigo e votos de felicidades. Por algum tempo ainda se falaram, depois os contatos foram rareando e por fim terminaram. As lembranças foram se tornando pálidas, esmaecidas, como as folhas que caem das árvores nos dias de outono. A primavera entre eles havia terminado.Alguns anos depois, ele chegou em casa do trabalho e viu a luz da secretária piscando. Reconheceu de imediato a voz, mesmo após tantos anos. O timbre era o mesmo. Foi tomado por uma emoção súbita, o coração palpitou tão alto que nem permitiu ouvir o recado direito. Teve de voltar a mensagem algumas vezes.Ela estava de volta! O amor acabou, aconteceram algumas traições, ela concluiu que traição maior com ela mesma seria manter o casamento apenas por covardia. Afinal, não tiveram filhos, ela se tornara uma executiva graduada em um dos maiores grupos de comunicação do país; poderosa, sempre dispôs sobre a vida de tantos a seu serviço, resolveu que poderia dispor da sua própria vida também. E ele, como estava? Casado, solteiro... poderiam se encontrar, falar dos velhos tempos?Ele anotou afoitamente os números do celular que ela ditou e discou imediatamente. A emoção quase o sufocou quando ela atendeu dizendo: “- Olá, meu amigo! Que bom que você ligou!”. Ela disse que estava temerosa, não sabia mais nada sobre ele, talvez estivesse casado, com filhos... talvez não tivesse interesse em a encontrar...Ele deu uma gargalhada. Era muito bom tê-la de volta, de onde ela tirou aquelas bobagens todas? Como fazê-la entender que jamais a esquecera? Não, não tinha casado, não, não teve filhos também, sim, sim, queria revê-la, claro que sim!!!Marcaram para as dez horas, ele a buscaria no hotel em que se hospedara. Quando desligou, não conseguia parar de gritar, ensaiou uns passos de dança, riu muito!!!! Ela estava de volta, eles iriam sair juntos. Ela, depois de tantos anos, sua melhor amiga, sua confidente, sua irmã. Ela.Tomou um banho demorado, caprichou na barba, usou aquela loção importada que guardava para noites especiais, vestiu a sua melhor roupa. Na garagem, hesitou antes de entrar no carro, um modelo popular, antigo, que já nem era mais produzido. Pensou, mas achou que se ruim era chegar com aquele carro, pior seria chegar de táxi. Entrou, ligou o motor e saiu afobado, cantando pneus. Estava quase na hora.No saguão do hotel, pediu para avisar que a estava esperando embaixo. Os minutos que passou ali em pé aguardando pareciam intermináveis, valeram por horas de esforço, tiveram cores de sofrimento. Quando a porta do elevador abriu e ela apareceu, desapareceu como por encanto o peso de toda aquela espera, de todos aqueles anos em que se sentira meio órfão, abandonado, largado na vida, em que mesmo sem se dar conta a buscara em cada mulher com quem se relacionou .Ela estava deslumbrante. Não pela roupa, até que bem simples, apesar de ser de marca, apenas um jeans, uma blusa e sandálias. O deslumbre estava na luz que emanava do seu sorriso, do calor que brotava dos seus olhos. No abraço que deram, pareciam se fundir; não fossem fortes e seus corações teriam derretido ali, tamanho o calor que aquele abraço proporcionou. Riam sem parar, como duas crianças. Só conseguiam murmurar: “-você está ótimo!”; “- você também!”.Resolveram procurar algum point das antigas para relembrar e não encontraram nenhum. Perceberam que a Vida sinalizava com o novo para eles, e desistiram de tentar pautar o passado. Foram para um restaurante da moda, muito badalado, comeram, beberam, riram. Brincaram com as suas histórias, troçaram de suas vidas, riram de como a vida brincara com eles. Na hora de pagar a conta, ela puxou a nota para si, disse que era algo que sempre quis fazer, pagar a conta para um homem! Ele sorriu sem graça, mas no íntimo ficou aliviado, aquele restaurante estava muito acima do que poderia bancar. E aceitou rindo, fazendo um gestual de tudo bem, como se entendesse e aceitasse apenas como brincadeira.Tarde da noite, saindo do restaurante, ela disse que queria dançar. Foram para uma boate, dançaram afastados, beberam, dançaram juntos, beberam mais, se beijaram. Foi como se uma represa se rompesse; águas antes paradas, serenas, se transformaram em um caudal de sentimentos, em rodamoinhos de fúria louca, de gemidos, gritos, mordidas, amassos. Não podiam mais resistir à pressão daquelas águas por tanto tempo estagnadas, libertas de súbito e transformadas em corredeiras de paixão. Aquelas águas só parariam ao chegarem ao mar.E assim foi. Foram para a praia, tiraram as roupas e mergulharam nus, de mãos dadas. Após o mergulho no mar, mergulharam fundo um no outro, se amaram e se possuíram como se tivessem tomando posse de algo que sempre souberam ser deles. Algo que antes não quiseram ou não puderam entender, mas que agora queriam e precisavam como se dele dependessem para continuar vivendo. Algo essencial.Já estava amanhecendo quando ele a deixou no hotel. Riram do estado das suas roupas, fizeram piadas sobre o que o pessoal da recepção iria pensar. Trocaram mais um beijo, ela desceu do carro, deu mais um sorriso, virou de costas e entrou. Ele respirou fundo, sorriu, ligou o motor e foi para casa. Precisava tomar um banho rápido, tinha menos de duas horas para chegar no trabalho. Ele batia ponto, não podia atrasar.Aquele dia não rendeu nada. Ele não conseguia se concentrar. Tudo o que fazia era repassar a noite anterior, várias e várias vezes. Os colegas davam risadas, diziam que ele estava com um sorriso estranho! E cada vez que diziam isso, o sorriso mais se expandia na sua face.Um pouco antes do fim do expediente, ligou para o hotel. Certamente ela já estava acordada, e queria combinar de se encontrarem novamente. Ao pedir o nº do quarto dela, a resposta que ouviu o acertou como um murro na cara, jogando longe aquele sorriso que parecia tão fortemente plantado em seu rosto. Ela partira.Mandou fechar a conta um pouco antes do meio-dia; mandou pedir um táxi para levá-la ao aeroporto; não, não deixara nenhuma mensagem. Sim, com certeza, verificara novamente e não havia nenhuma mensagem para ele. Ligou para sua própria casa, na esperança de que ela tivesse deixado alguma mensagem, e a secretária eletrônica, ao atender apenas no quinto toque, já lhe deu a resposta. Nenhuma mensagem.Ficou sem chão, sua visão turvou, lágrimas brotaram com tal intensidade que nenhum dique poderia reter. Alguns colegas acudiram, pensando se tratar de algum mal súbito. Sem nada explicar, pegou o seu paletó na cadeira e saiu apressado. Precisava andar, buscar ar, não conseguia mais respirar.Ficou andando pelas ruas, sem rumo, até alta madrugada. Finalmente cansado, abatido, vencido pela noite anterior aliada à dor daquele dia, resolver se render e voltar para casa.Ao chegar, não encontrou nos bolsos as chaves. Devia ter esquecido no escritório. Morava em um prédio antigo, que só tinha um porteiro e este ficava na portaria até as oito da noite. Depois desse horário, cada morador que quisesse entrar em casa tinha de abrir o portão sozinho. Sem alternativa, tocou a campainha da casa do porteiro; a esposa dele fazia a faxina do seu apartamento e poderia lhe emprestar a chave. Ao ouvir a voz sonolenta dizendo alô, pediu desculpas, deu uma explicação qualquer e esperou. Passados alguns instantes, o porteiro apareceu e abriu o portão.Junto com a chave do apartamento, entregou um maço de rosas. Disse que entregaram por volta das quatro, e que para não deixar morrer, a sua mulher levara para a casa deles e colocara num jarro. Grampeado no papel que envolvia as rosas, havia um envelope.Acelerando o passo, correu para casa, arrancou nervosamente o envelope, abriu e começou a ler a carta que tinha dentro. A ansiedade foi se transformando novamente em sorriso. Um grande sorriso, cada vez mais largo.Na carta, ela dizia que logo após tê-lo rejeitado naquela vez em que se conheceram, ao se transformarem em amigos, foi aos poucos o conhecendo e criando admiração por ele; que em pouco tempo, aquela admiração se transformara em amor. Mas, como ele nunca mais tentara nada, como passou a tratá-la como amiga, acreditava que o sentimento dele havia morrido, e não tivera coragem de se expor, de se abrir.Quando conheceu o seu ex-marido, falou sobre ele na esperança de ver alguma reação, ainda que tênue, no seus olhos, na esperança de ouvir algo do tipo “-você pertence a mim, não a ele!”. O que ouviu foram palavras de estímulo, que fosse fundo, o cara parecia legal... e ela foi, por pura desistência de continuar a tentar. Por se sentir incapaz de fazê-lo entender o que lhe ia na alma.Durante os anos de casada, passava o tempo todo comparando os dois, o gestual, o emocional... se perguntava como teria sido se tivesse feito sexo com ele. E para fugir da armadilha de um casamento sem calor, se lançara de corpo e alma no trabalho, fizera da carreira a sua razão de vida.E finalmente achou que não podia mais, que precisava saber. Terminou o casamento e começou a viagem em busca de si mesma, permitiu-se singrar os mares de retorno em busca do seu porto seguro. Precisava saber se esse porto existia, ou se fora apenas devaneios de juventude.A noite passada tivera diferentes gostos para ela. Por um lado, o sabor da comprovação daquilo que sempre soubera: foram feitos um para o outro. Por outro lado, a tristeza de tantos anos desperdiçados por medo de se assumir, de correr o risco de se declarar. Hoje sabia o quanto fora tola. Nenhuma carreira, nenhum sucesso ou reconhecimento profissional poderia pagar o que sentira na noite passada. Não tinha preço a sensação de finalmente se saber pertencer a alguém. Seu dono. Seu homem.E por isso resolveu partir. Estava voltando para São Paulo, para varrer da sua vida o resto do entulho que a manteve imobilizada por tantos anos. Precisava romper as amarras profissionais para se sentir livre. Iria conversar sobre alguma possível função na filial do Rio de Janeiro, mas mesmo que não conseguisse, viria assim mesmo. Sabia que ele tinha uma vida apertada, mas o que ela ganhara e juntara durante todos aqueles anos era o suficiente para proporcionar conforto a ambos. Assim que acertasse os ponteiros com seu passado, iria acertar o seu relógio para começar a marcar o tempo de uma nova vida, e desta vez ao seu lado. O compasso binário do velho relógio de cuco marcaria o ritmo da nova vida a dois. E eles seriam apenas um. Finalmente.Que ele tivesse só um pouco mais de paciência e a aguardasse. Ainda viveriam muitas vezes a noite passada. Ainda teriam muito o que conversar about last night."

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